terça-feira, outubro 02, 2007

A vida passa ou não se passa?

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada que já me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei em seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfromba de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de magoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quando não terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só no silêncio cercado pelo som do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância de qualquer céu.


Fernando Pessoa